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Duas décadas de jornais e jornalismo

Jaime Lourenço* - 03/05/2024 - 10:08

2004 foi um ano carregado de grandes acontecimentos no panorama internacional e nacional: os Estados Unidos admitem que o Iraque não possuía armas de destruição massiva (motivo que deu origem a mais um conflito armado de grande escala), ocorre um atentado terrorista em Madrid, um tsunami provoca uma destruição de enormes proporções no sudeste asiático, o Facebook é criado; e por cá celebra-se o futebol com a Selecção Nacional a chegar à final do Euro enquanto cresce uma crise política com a dissolução da Assembleia da República; já em Castelo Branco ainda decorrem as intervenções do Programa Polis na cidade.

O mundo estava em perfeita ebulição com os acontecimentos que apareciam todos os dias nos jornais e nos entravam em casa pela televisão. No entanto, o acontecimento que aqui quero destacar é muito pessoal porque, sem que nada o fizesse prever, 2004 ficou-me marcado como o ano em que comecei a olhar para os jornais e para o jornalismo de outra perspectiva. Tudo porque um professor se lembrou de me desafiar a escrever uma notícia para o jornal da escola sobre uma visita de estudo que havíamos realizado. Mal esse professor imaginava que tinha despertado uma curiosidade imensa sobre o universo dos media e do jornalismo numa criança de apenas 11 anos. Passados 20, é difícil, neste exercício de memória, recordar o que mais me terá motivado naquela idade, mas arrisco dizer que terá sido a função mais basilar do jornalismo: contar estórias e dá-las a conhecer.

Foi o início daquilo que se veio a materializar como um caminho de experimentação em dois jornais escolares de Castelo Branco: primeiro no Gazeta Escolar, da Escola João Roiz, e mais tarde no histórico Dois Pontos, do Liceu Nuno Álvares.

Poder-se-á questionar que actividade teria uma criança (à época), para hoje (20 anos depois) estar a falar numa espécie de percurso consolidado? e que conhecimentos teria para o pôr em prática? O caminho foi possível porque, primeiro, fui rapidamente integrado pelos professores responsáveis de ambos os jornais na redacção destes, onde, além de redactor, editava, paginava, fotografava e estava inserido em todo o processo de decisão editorial. Segundo, esses professores, informalmente, ensinaram-me as bases de escrita e das regras jornalísticas, mas também de paginação, entre outros aspectos. Um exemplo do papel que bons professores podem vir a ter na vida dos seus alunos, mas também dos resultados que a educação informal pode originar. Praticamente todos estes docentes nunca haviam sido formalmente meus professores na sala de aula, mas com eles aprendi muito. Tanto que é impossível quantificar. Foram eles: Carlos Gonçalves, Luísa Fernandes, Liliana Gondar, José Martins, Filomena Narciso, Cecília Botelho e Agnelo Quelhas (da Escola João Roiz) e Maria João Damas e Cristina Santos (da Escola Nuno Álvares).

Todos foram peças imprescindíveis que marcaram o início desta jornada a quem volto a agradecer publicamente. Já o havia feito há 10 anos, a propósito da edição do meu primeiro livro — Jaime Lourenço: 10 Anos em Retrospectiva — que reúne os principais trabalhos que tinha produzido e publicado nessa primeira década de trabalho com jornais.

Mas, se hoje há uma orientação para apostar em políticas de literacia mediática e educação para os media em contexto escolar, serve este caso pessoal para mostrar como trabalhar os jornais e o jornalismo em momentos formais e informais na escola pode trazer frutos e capacitar os estudantes para melhor compreenderem o ecossistema mediático em que vivem.

Aliás, recordemos que em Castelo Branco foi desenvolvido um projecto pioneiro e premiado internacionalmente de produção de jornais escolares (onde, salvo erro, todas as escolas do distrito produziam o seu próprio jornal escolar). Em 2010, escrevi que este projecto “visava contribuir para que os alunos se tornassem progressivamente descodificadores críticos de mensagens media e produtores reflexivos da mensagem media”. 14 anos depois, o mundo pode ter mudado, mas os pressupostos são mais actuais que nunca.

Contudo, infelizmente, fruto de políticas educativas, estes títulos, exemplos ímpares de jornais escolares na Beira Baixa, viram o seu fim, incluindo o histórico Dois Pontos com mais de três décadas de actividade ininterrupta.

Este foi apenas o início da caminhada. Com os jornais escolares, vieram os jornais de Castelo Branco — mantendo a colaboração com o Reconquista ainda hoje —, as revistas especializadas e a televisão.

Mais do que a actividade jornalística propriamente dita, procurei sempre reflectir sobre ela, fosse com o olhar atento e curioso em criança, fosse através da investigação académica que procurei levar a cabo nos últimos anos e que mantenho.

Hoje, a postura é naturalmente outra, tentando passar a curiosidade e a necessidade que a sociedade tem de um jornalismo robusto e sério aos alunos da Licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa, onde dou aulas. Procurando sempre honrar aqueles (professores e jornalistas) que tanto me ensinaram e contribuíram para o profissional e cidadão que sou.

Passaram 20 anos sempre a olhar para o jornalismo, essa actividade que tem a missão mais nobre na sociedade democrática. Foram várias as perspectivas e os ângulos de observação, contemplação e, por vezes, inquietação. Podemos resumir os primeiros 10 anos em experimentação, procura e desafio, e os últimos 10 em prática, reflexão e questionamento.

Não sei o que o futuro reserva, mas num exercício de previsão, esta preocupação com os media, o seu estudo e a sua prática irão continuar a interrogar-me e a levar-me, na medida do possível, a construir algum pensamento sobre o jornalismo dos nossos dias. E não nos esqueçamos: um bom professor faz a diferença na nossa vida.

 

*Professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa

Por opção do autor, este texto não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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